A ditadura militar e a governança da água no Brasil (Braga, 2020)

Ana Paula Fracalanza

HD Braga, F.S. 2020. A ditadura militar e a governança da água no Brasil: Ideologia, poderes político-econômico e sociedade civil na construção das hidrelétricas de grande porte. CRC Press/Balkema. ISBN 9780367498757, 226 p., GBP £53.59.

(URL: www.routledge.com/A-Ditadura-Militar-e-a-Governanca-da-Agua-no-Brasil-The-Military-Dictatorship/de-Souza-Braga/p/book/9780367498757)

Ana Paula Fracalanza

Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo; fracalan@usp.br

To cite this Review: Fracalanza, F.S. 2020. Review of "A ditadura militar e a governança da água no Brasil: Ideologia, poderes político-econômico e sociedade civil na construção das hidrelétricas de grande porte". CRC Press/Balkema, 2020, by Fernanda de Souza Braga, Water Alternatives, http://www.water-alternatives.org/index.php/boh/item/129-ditatura

 

See english version below

O livro discute como a sociedade civil participa da governança da água no Brasil atual, a partir da criação da infraestrutura hidrelétrica no país, durante o período do governo militar de 1964 a 1985. Com cinco capítulos e a partir de categorias de análise da Ecologia Política, a autora criticamente identifica agentes econômicos que se beneficiaram da construção e gestão de Usinas Hidrelétricas, bem como atores e movimentos sociais que resistiram à construção das Usinas.  

No primeiro capítulo, a autora traça um histórico dos conceitos de governança e de governança da água, definindo esse último como um processo socialmente construído em torno do uso da água, realizado por meio de conflito e cooperação para alcançar um consenso sobre políticas, gestão e processos de tomada de decisão.  A autora defende uma visão participativa de governança e considera que a sociedade civil está envolvida neste processo.

No capítulo 2, a autora oferece uma análise histórica do setor elétrico brasileiro entre os anos 1920 e 1980. O texto notavelmente expõe os momentos chave quando as principais companhias e comissões governamentais foram criadas e analisa a participação de atores do setor elétrico durante o período militar.

No terceiro capítulo, o livro investiga a construção de três Usinas Hidrelétricas na Amazônia brasileira: Tucuruí no Pará; Balbina no Amazonas; e Belo Monte no Pará. Este capítulo baseado em um estudo de caso permite verificar alguns dos impactos sociais, econômicos e ambientais da implantação destas Usinas Hidrelétricas, tais como aumento da pobreza, crescimento das desigualdades econômicas e perdas de florestas naturais.

No Capítulo 4, o livro se volta para uma análise de material jornalístico publicado em jornais da época (O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Veja Magazine, e Manchete), assim como jingles e filmes de Propaganda Governamental produzida no final dos anos 1970 e princípios dos anos 1980. A análise discute como Usinas Hidrelétricas foram o foco de Campanhas Governamentais que enfatizaram sua importância econômica e sua contribuição fundamental para alcançar o ideal do chamado "Brasil Grande" ou "Brasil Potência".

No último capítulo, a autora analisa os movimentos sociais e, em algumas ocasiões, manifestações e mobilizações que emergiram como reação às obras nas Usinas Hidrelétricas de Itaipú, Sobradinho e Tucuruí que enfatizavam impactos sociais e econômicos negativos nas populações afetadas. O livro notavelmente investiga a história, formas de atuação e ganhos de um destes mais importantes movimentos sociais, o Movimento dos Atingidos por Barragens- MAB

Na conclusão, o livro apresenta a questão de “porquê o sistema de gestão de recursos hídricos brasileiro, considerado um sistema consistente, não consegue promover, de fato, uma governança participativa e democrática da água no país”? (p.184), e responde que isto está relacionado com suas “raízes modernas” (p.191) e a ditadura militar. A autora ainda destaca que as dificuldades que a atual governança apresenta são oriundas de questões sociais geradas durante o período da ditadura militar e que persistem ainda hoje não resolvidas, como por exemplo: a falta de conexão entre o planejamento setorial e a elaboração dos planos dos recursos hídricos; a não salvaguarda de áreas de reservas indígenas; a existência de um imaginário em relação aos megaprojetos e ao poder do Estado.

A despeito de este não ser o recorte deste trabalho, é importante considerar que dificuldades de implementar a governança da água participativa no Brasil tem raízes mais antigas que a ditadura militar que se iniciou em 1964. Isto pois o Brasil é um país de herança escravocrata e passado agrário exportador, o que influencia sua formação socioespacial e a forma como se estruturam as relações sociais, com uma imensa desigualdade na distribuição de renda e elevados índices de pobreza. Esses processos, bem como a consolidação de uma burguesia industrial após 1929 também dificultam a consolidação de uma governança democrática e participativa da água no Brasil. No entanto, o fato de o livro traçar uma perspectiva histórica mais recente não prejudica o trabalho, que é uma contribuição de grande valia aos leitores interessados na governança da água, no setor de energia e no impacto das Usinas Hidrelétricas no Brasil.

 

*

This book discusses the way civil society currently takes part in water governance in Brazil, since the creation of hydroelectric plants in the country during the military government from 1964 to 1985. Having five chapters and based in the field of Political Ecology, the author critically identifies the economic agents that benefited from hydroelectric plants construction and management, as well as the social actors and movements that resisted the construction of the plants.

In the first chapter, the author draws a history of the concepts of governance and water governance, defining the later as a socially constructed process around the use of water that is performed through conflict and cooperation in order to achieve consensus on management, policies, and decision-making processes. The author upholds a participatory view of governance and considers that civil society is involved in this process.

In Chapter 2, the author provides an historical analysis of the Brazilian electric sector between the 1920s and the 1980s. The text notably exposes the key moments when the main companies and government commissions have been created and analyzes the participation of electric sector actors during the military period.

In the third chapter, the book investigates the construction of three Hydroelectric Plants in the Brazilian Amazon: Tucuruí in Pará; Balbina in Amazonas; and Belo Monte in Pará. This case study-based chapter highlights some of the social, economic, and environmental impacts of these hydroelectric plants, such as an increase in poverty, economic inequalities, and loss of natural forests.

In Chapter 4, the books turn towards a review of journalistic material published in newspapers of the times (O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Veja Magazine, and Manchete), as well as jingles and films of the Government Propaganda that were produced at the end of the 1970s and the beginning of the 1980s. The analysis discusses how hydroelectric plants were the focus of government campaigns that stressed their economic importance and their key contribution to reaching the ideal of the so-called 'Great Brazil' or 'Power Brazil'.

In the last chapter, the author analyzes the social movements and, at times, the manifestations and mobilizations that emerged in reaction to the construction of the Itaipú, Sobradinho and Tucuruí Hydroelectric Plants and that stressed their negative social and economic impact on the affected populations. The book notably investigates the history, actions and accomplishment of one of these most important social movements, the Movimento dos Atingidos por Barragens (Dam Affected People Movement).

In its concluding remarks, the book asks "why is the Brazilian water resources system, considered a consistent system, unable to effectively promote participative and democratic water governance in the country?" (p.184), and answers that it relates to its "modern roots" (p.191) and the military dictatorship. The author further highlights the difficulties for present day water governance and links them to social issues that date back to the military dictatorship and are yet unresolved such as: the lack of connection between sectoral planning and the elaboration of water resource plans; the lack of protection of indigenous reservation areas; and the existence of an imagery related to megaprojects and State power.

Although it is not the focus of this work, it is important to consider that difficulties to implement participatory water governance in Brazil has older roots than the 1964 military dictatorship. This is due to Brazil being a country with slavery heritage and an exporting agrarian past, which affects its socio-spatial formation and the way social relations are structured in the country, with high inequality in income distribution and high poverty rates. These processes, as well as the consolidation of an industrial bourgeois class after 1929, hamper the consolidation of democratic and participatory water governance in Brazil. However, this lack of a longer historical perspective does not detract the work, which is a great contribution and will be of interest to readers concerned about water governance, the energy sector and hydroelectric plants impacts in Brazil.

 

Additional Info

  • Authors: Fernanda de Souza Braga
  • Year of publication: 2020
  • Publisher: CRS Press
  • Reviewer: Ana Paula Fracalanza
  • Subject: Water policy, Water governance, Transboundary waters, Hydrocracies, Dams, Water history
  • Type: Review
  • Language: Portuguese